13 de maio de 2015

Experimentar e respeitar x ter fé e impor

Desde março venho retomando minha rotina de ir para a USP frequentar as aulas do curso de Letras (entre 2002 e 2003 comecei o curso e então tranquei a matrícula – que depois veio a ser cancelada – pois fui morar fora do Brasil) e faz umas semanas que tenho reservado esse trajeto – principalmente o do metrô – para a leitura do livro Cosmos, do Carl Sagan.
Leio algumas páginas por dia e quase todo dia descubro algo que considero muito valioso.


(Sugestão: escute enquanto lê!
https://open.spotify.com/artist/7D9meP7t27vYQwvN7rCcw8)


Ontem eu estava na parte do livro onde Sagan fala do método científico e de sua utilização (ou não) no decorrer da história da humanidade. Mais precisamente sobre a curiosidade humana, sobre nossa capacidade de questionar, investigar e aprender.
Foi muito esclarecedor para mim e de tão empolgado que fiquei, aqui estou. Enxerguei algo bem claramente: evolução.

Eu, que nasci em 1975 e estou escrevendo isto aqui agora, e você, que muito provavelmente nasceu em algum ano entre 1935 e 2005 e que está lendo isto aqui num outro momento – que você também chama de agora –, estamos habituados a escutar termos como ‘ciência’ e ‘tecnologia’, e claro, habituados aos avanços proporcionados por essas atividades.
Mas todos os seres humanos vivos hoje são apenas os integrantes mais recentes dentre os que surgiram na Terra; fazemos parte de um grupo de seres que evoluiu profunda e longamente, a ponto de relativamente dominar este planeta.

Essa evolução é um processo muito sinuoso que começou há longínquos 3,5 ou mesmo 4 bilhões de anos, quando as primeiras bactérias surgiram, num planeta Terra em condições ambientais bem diferentes deste em que vivemos hoje (mas ainda assim o mesmo, no mesmo sistema Solar).
É um processo em andamento e não sabemos onde vai dar.

Hoje existem quase 14 milhões de espécies de seres vivos no nosso planeta e isso representa menos de 1% de todas as espécies que já surgiram na Terra (os outros mais de 99% das espécies, isto é, centenas de milhões de espécies de seres vivos, caíram em extinção).

O primeiro ser humano exatamente como eu e você (anatomicamente) viveu na África há aproximadamente 200 mil anos. De lá para cá viemos descobrindo e desenvolvendo tudo o que sabemos hoje.
Antes disso havia outros tipos de humanos, hoje todos extintos: nossos antepassados e antecessores, das várias espécies integrantes do gênero Homo, que surgiu há mais ou menos 2,5 milhões de anos, também na África.
E antes ainda viviam nossos antepassados primatas, a partir de 75 milhões de anos atrás, de onde viemos nós e também os macacos, chipanzés, bonobos, gorilas e orangotangos.

Os seres humanos que viviam há 30 mil anos atrás, espalhados por África, Europa, Ásia e Oceania, eram tão inteligentes quanto eu e você somos hoje.
Parece loucura eu dizer isso, mas é a mais pura verdade.
Eles já eram capazes de pensamento crítico, abstração de conceitos, planejamento, simbolismos, tecnologia aplicada, comunicação, adaptação cultural e normas sociais.

De acordo com o escritor Daniel Loxton, questionar e investigar – buscando entender as coisas e aprendendo com as descobertas – é algo tão antigo quanto a própria humanidade.
Eu concordo, acredito que isso que a grande maioria de nós sente, essa curiosidade, essa inquietação e essa vontade ou mesmo necessidade de entender as coisas, isso tudo sempre existiu em nossa espécie. Assim como nos surpreendemos ao ver que nossas crianças desde o nascimento apresentam as mesmas características que vemos nos adultos, e mesmo assim à medida em que crescem vão aprendendo cada vez mais coisas.

Mas se a evolução humana já tinha chegado há 30 mil anos ao estágio em que estamos hoje, então por que a confecção de roupas só apareceu há 26 mil anos? Por que a primeira vila (pessoas vivendo em comunidade) só apareceu há 25 mil anos atrás? Por que a cerâmica para cozinhar só apareceu há 20 mil anos atrás? Por que a domesticação de animais só começou há uns 13 mil anos atrás? Por que a agricultura e a civilização só apareceram há 10 mil anos? Por que o uso da roda só apareceu há 7 mil anos atrás? Por que a escrita e o primeiro calendário só apareceram há 6 mil anos? Por que o papel só apareceu há 5 mil anos atrás? Por que a medicina só apareceu há 3,5 mil anos atrás? Por que o uso do ferro e as grandes construções arquitetônicas (pirâmides) só se espalharam há 3 mil anos atrás? Por que o conceito de método científico só apareceu há 2,5 mil anos atrás?

Não sabemos as respostas, as hipóteses são muitas e devem ter sido conjuntos de fatores. Mas temos certeza de duas coisas:
1. Alguns dos seres humanos vão continuar investigando para descobrir as respostas;
2. Olhando para trás, percebemos que a evolução segue um padrão de crescimento exponencial de complexidade.

Ao contrário do que dizem os criacionistas usando a segunda lei da termodinâmica para ‘provar’ a existência de deus, isto é, que o Universo tenderia obrigatoriamente da ordem à desordem, do mais complexo ao mais simples, tornando a origem da vida e o processo evolutivo dos seres vivos impossíveis; podemos facilmente perceber que, senão com o surgimento do universo (pois da vida certamente sim), a lei é perfeitamente coerente com a evolução – do universo e da vida.

Howard L. Resnikoff diz que “a vida é a solução da natureza para preservar informação apesar da segunda lei da termodinâmica”.

Segundo o biólogo Eric Schneider a luta pela vida consiste no esforço dos seres vivos para dissipar o gradiente de temperatura induzido na Terra pela radiação solar. Ao desenvolver mecanismos que promovem maior degradação de energia, é induzida a formação de estruturas ordenadas, tornando o sistema (nesse caso, a espécie de seres vivos) mais complexo.
Uma forte evidência disso é a alta taxa metabólica dos animais homeotérmicos (aves e mamíferos), quando comparada à dos pecilotérmicos (peixes e répteis) – que surgiram 350 milhões de anos antes.
A seleção natural encarregou-se de manter e favorecer as estruturas (espécies) que dissipavam energia de modo mais eficiente, gerando um aumento da complexidade.

Do mesmo modo que não poderíamos esperar sermos capazes de retirar a água do café quente que estava dentro de uma xícara e que essa água, cujas moléculas antes estavam unidas às do café, pudesse se tornar gelo fora da xícara (assim como podemos sim esperar que um cubo de gelo derreta caso colocado numa xícara de café quente), não poderíamos esperar que os seres humanos fossem capazes de inventar a imprensa antes da escrita, o carro antes da roda ou a internet antes do computador.

Há 30 mil anos os seres humanos já eram iguais a nós hoje, sim, mas tinham menos repertório, menos bagagem cultural. E isso significa muito, pois quanto mais descobrimos, mais somos capazes de descobrir, isso leva ao aumento progressivo na taxa de crescimento do conhecimento, tornando as mudanças decorrentes dessas novas descobertas cada vez mais frequentes e maiores.

Hoje muitos de nós, talvez a maioria dos cerca de 7 bilhões de seres humanos que vivem neste nosso planeta, aceitamos sem maiores problemas, ideias que descrevem fatos elementares como por exemplo a Terra ter um formato esférico e orbitar o sol que é o centro do sistema solar, mas no seu livro Cosmos, Sagan me alertou sobre o fato de que, apesar dessa premissa hoje considerada parte do senso-comum ter sido inequivocamente formulada pela primeira vez há cerca de 2500 anos, somente há cerca de 400 anos ela começou a ser aceita.
Não somente isso; há cerca de 2300 anos também houve quem já conseguisse calcular as marés (inclusive associando-as à lua), o tamanho do planeta e sua distância em relação à lua e ao sol!

O que houve com a humanidade, que, ignorou por dois mil anos, ideias engenhosas e sofisticadas que vieram a ser comprovadas com evidências irrefutáveis, se tornando aceitas por toda a comunidade científica?

Se a aparente discrepância entre a capacidade do ser humano de 30 mil anos atrás (exatamente a mesma que a nossa hoje) e a “demora” na evolução pode ser atribuída ao processo natural também descrito pela flecha do tempo da segunda lei da termodinâmica, o mesmo não pode ser dito sobre um período mais próximo ao nosso presente: Sagan me mostrou como essa nossa capacidade extraordinária, de evoluir, recentemente pôde ser reprimida como nunca antes (pelo menos de acordo com os conhecimentos históricos que temos à disposição), atrasando a humanidade de uma forma absurda.

Eu tinha a impressão de que Platão e Aristóteles eram os patronos da ciência. Os pioneiros da busca pelo conhecimento, juntamente com Sócrates.
Isso deve ter sido por conta das aulas de história e ciências, durante o ensino fundamental e médio, na escola.
Nasci e cresci no Brasil e no período em que cursei o ensino fundamental o país estava nos anos finais da ditadura militar e nos anos iniciais da redemocratização. Disciplinas como filosofia e sociologia tinham sido banidas e o currículo de disciplinas como ciências, história e geografia foi adaptado para satisfazer a censura da ditadura reacionária.
O livro Cosmos já tinha sido publicado (foi publicado em 1980) mas obviamente as escolas onde eu estudei nunca o usaram.

Pois bem, dentre os tantos cientistas pioneiros, que séculos antes do cristianismo e antes mesmo de Sócrates, já faziam descobertas maravilhosas sobre a natureza e começavam a compreender suas características mais sublimes, podemos citar Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes de Mileto, Xenófanes, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Zenão de Eleia, Leucipo de Abdera, Demócrito, Eratóstenes de Cirene e Seleuco de Selêucia...

Eles viveram na Grécia antiga, mais precisamente em Jônia (na costa sudoeste da Anatólia – atual Turquia), numa sociedade não governada por uma elite, mas por mercadores; numa sociedade que por conta de sua posição geográfica teve influências de várias outras (como Egito e Mesopotâmia); e principalmente, numa sociedade que permitiu a liberdade de se tentar entender o mundo sem recorrer aos deuses. E infelizmente todos eles foram deliberadamente desprezados a partir da adoção das linhas de pensamento de Platão e Aristóteles.

Há uma visível continuidade no esforço intelectual e nas ideias de Tales no século VII ac com as ideias propostas no século XVII por Newton (depois de Newton, provavelmente ninguém mais teve tamanho impacto na humanidade através da ciência, a não ser Darwin e Einstein).
Assim como há uma visível continuidade no esforço intelectual e nas ideias de Anaximandro e Demócrito com as ideias de Darwin.

Além das ideias de Platão e Aristóteles não permitirem a liberdade que as dos chamados Pré-Socráticos permitiam (e de não serem tão avançadas), descobri que tanto Platão quanto Aristóteles serviam a tiranos e defendiam a escravidão e o elitismo (o direito ao conhecimento para apenas uma pequena e poderosa elite).
Resumindo, os chamados Pré-Socráticos estavam muito mais alinhados com a ciência moderna do que o trio Sócrates, Platão e Aristóteles (com exceção de Pitágoras e seus discípulos, que eram contrários ao método científico e influenciaram Platão).

Platão defendia que os astrônomos pensassem nos céus, não que perdessem tempo os observando. Aristóteles acreditava que os escravos eram seres inferiores e que era melhor para eles estarem sob o jugo de seus senhores.

Os Jônios, e todos os seus cientistas, foram subjugados por outros povos helênicos pois não tinham escravos.
A partir disso a civilização grega desprezou os Pré-Socráticos.

E o resto é a história que todos sabemos (ou deveríamos saber): os romanos dominaram os gregos e adotaram sua filosofia (claro, sobretudo a de Sócrates, Platão e Aristóteles), inclusive adaptando os deuses gregos para formar a mitologia latina; depois o cristianismo se tornou a religião dos romanos, que adaptaram seus deuses para que coubessem como santos cristãos e adaptando a filosofia de Platão e Aristóteles para montar seus dogmas; então se sucederam as guerras religiosas entre cristãos e muçulmanos e as rupturas (ortodoxos e protestantes); também a infame e cruel “santa” Inquisição (que censurou, perseguiu, torturou e/ou matou quem ousasse questionar e investigar sobre a natureza e a vida).

Foram dois mil anos de atraso, onde os pouquíssimos avanços científicos vieram sobretudo dos árabes e dos chineses, até que no século XVI, aos poucos as ideias dos Pré-Socráticos foram retomadas, desenvolvidas e avançadas, com o advento da Renascença e então do Iluminismo.
Graças a essa retomada do método científico que tivemos a revolução industrial e todos os demais avanços tecnológicos mais recentes.

A ciência é a melhor maneira que temos para conhecer a natureza.
Não porque a ciência seria infalível, justamente porque uma teoria científica é empírica e está sempre aberta à contestação se novas evidências forem apresentadas. Ou seja, nenhuma teoria pode ser considerada estritamente certa para sempre, pois a ciência aceita o conceito de falibilismo.

Já as religiões impõem dogmas e a fé impede que a curiosidade e o senso crítico possam ser postos em prática e desenvolvidos.
As religiões organizadas perderam parte de seu imenso poder, mas ainda dominam e limitam a vida de bilhões de pessoas ao redor do mundo.
Apesar das muitas obras de caridade e das mensagens de paz e amor, as religiões ainda são a maior fonte de intolerância e violência no mundo.

Qualquer religioso que ousar questionar e investigar, estará em um dilema: abandonar a religião ou fingir que tem fé.

A espiritualidade pode ser algo positivo, pois não necessariamente interfere na capacidade evolutiva, mas as religiões organizadas certamente foram e cada vez mais são negativas para a espécie humana.

Assim como a escravidão e o racismo já foram considerados algo justo e positivo por muitos anos, e hoje não mais, espero que a religião, a guerra e toda forma de violência e opressão também sejam deixados para trás em algum ponto de nossa evolução.
Arrisco dizer que é inevitável que isso aconteça, cedo ou tarde (a não ser que estejamos extintos antes).

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Fontes:
http://en.wikipedia.org/wiki/Timeline_of_the_evolutionary_history_of_life
http://en.wikipedia.org/wiki/Bacteria
http://en.wikipedia.org/wiki/Timeline_of_human_evolution
http://en.wikipedia.org/wiki/Timeline_of_scientific_thought
http://en.wikipedia.org/wiki/Timeline_of_religion
http://en.wikipedia.org/wiki/Cosmos_(book)
http://en.wikipedia.org/wiki/Cosmos:_A_Personal_Voyage
http://en.wikipedia.org/wiki/Behavioral_modernity
http://en.wikipedia.org/wiki/Science
http://en.wikipedia.org/wiki/Scientific_skepticism
http://en.wikipedia.org/wiki/Outline_of_scientific_method
http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_scientific_method
http://en.wikipedia.org/wiki/Timeline_of_the_history_of_scientific_method
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ensino_m%C3%A9dio
http://en.wikipedia.org/wiki/Heliocentrism
http://en.wikipedia.org/wiki/Timeline_of_human_prehistory
http://en.wikipedia.org/wiki/Timeline_of_ancient_history
http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_languages_by_first_written_accounts
http://www.leb.esalq.usp.br/aulas/lce5702/termodinamicavida.pdf
http://en.wikipedia.org/wiki/Timeline_of_the_evolutionary_history_of_life
http://en.wikiquote.org/wiki/Thermodynamics
http://en.wikipedia.org/wiki/Entropy_(arrow_of_time)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Segunda_lei_da_termodin%C3%A2mica